Skip to main content
ArtigosCívelEmpresarialProcesso CivilPublicações

A Desconsideração da Personalidade Jurídica e a Extensão da Falência: Uma Análise Crítica do REsp 1.897.356

Introdução

O Superior Tribunal de Justiça (STJ), no julgamento do Recurso Especial (REsp) 1.897.356, enfrentou a questão da desconsideração da personalidade jurídica e da extensão da falência em um caso envolvendo um grupo econômico. A decisão do STJ, ao anular a extensão da falência para 03 (três) empresas do grupo, suscita importantes discussões sobre os requisitos para a aplicação dessas medidas, especialmente em casos de grupos societários.

Desenvolvimento

No caso em análise, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ/RJ) havia estendido os efeitos da falência de uma companhia têxtil para outras 03 (três) empresas que mantinham vínculos econômicos com a falida. O TJ/RJ fundamentou sua decisão na existência de um grupo econômico e na alegação de que as empresas teriam ocultado relações comerciais.

O STJ, no entanto, reformou a decisão do TJ/RJ, entendendo que a mera existência de um grupo econômico não é suficiente para a desconsideração da personalidade jurídica e a extensão da falência. 

Para o STJ, é necessário comprovar a transferência de recursos entre as empresas ou demonstrar abuso ou desvio de finalidade, com base em fatos concretos que tenham prejudicado a pessoa jurídica.

A decisão do STJ encontra respaldo na jurisprudência da Corte e na doutrina, que têm se manifestado no sentido de que a desconsideração da personalidade jurídica e a extensão da falência são medidas excepcionais, que somente devem ser aplicadas em casos de comprovado abuso da personalidade jurídica, caracterizado pela confusão patrimonial ou pelo desvio de finalidade.

Fundamentação legal

Nos termos do artigo 50, do Código Civil [1], para que haja a desconsideração da personalidade jurídica, visando atingir sócios, administradores, grupos ou terceiros, é necessário demonstrar o abuso da personalidade, pela confusão patrimonial e/ou do desvio de finalidade. 

Com a Medida Provisória 881/2019, incluiu no referido artigo 50, do Código Civil, os §§ 1º a 5º que assim dispõem:

—1º- Para fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização dolosa da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza.

— 2º- Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por: 

I- cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa;

II- transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto o de valor proporcionalmente insignificante; e

III- outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.

— 3º- O disposto no caput e nos § 1º e § 2º também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica.

— 4º- A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica. 

— 5º- Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica (realces não originais).

Em paralelo ao Código Civil, temos a Lei 11.101/2005, que trata da recuperação judicial e falência, que em seu dispositivo 82-A, parágrafo único, assim dispõe:

“Art. 82-A. É vedada a extensão da falência ou de seus efeitos, no todo ou em parte, aos sócios de responsabilidade limitada, aos controladores e aos administradores da sociedade falida, admitida, contudo, a desconsideração da personalidade jurídica. (Incluído pela Lei nº 14.112, de 2020) (grifos nossos)

“Parágrafo único. A desconsideração da personalidade jurídica da sociedade falida, para fins de responsabilização de terceiros, grupo, sócio ou administrador por obrigação desta, somente pode ser decretada pelo juízo falimentar com a observância do art. 50 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil) e dos arts. 133, 134, 135, 136 e 137 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), não aplicada a suspensão de que trata o § 3º do art. 134 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil)”. (Incluído pela Lei nº 14.112, de 2020) (grifos nossos).

Com efeito, a simples existência de um grupo econômico, não é suficiente para autorizar a supressão da personalidade jurídica, se não ficar comprovar a prática de atos fraudulentos.

Nessa linha são os precedentes do Superior Tribunal de Justiça:

“AGRAVO INTERNO EM RECURSO ESPECIAL. FALÊNCIA. CRÉDITO. HABILITAÇÃO. GRUPO ECONÔMICO. SOLIDARIEDADE. INEXISTÊNCIA. NÃO PROVIMENTO. 1. A existência de grupo econômico não autoriza, por si só, a solidariedade obrigacional ou a desconsideração da personalidade jurídica. 2. Agravo interno a que se nega provimento”. (STJ, AgInt no REsp 1.738.588/DF, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, 4ª Turma, j. 22/11/2021) (realces não originais)

Muito menos ainda estender os efeitos da falência, pois é imperiosa a demonstração do abuso da personalidade jurídica, os quais não se presumem pela existência do grupo econômico.

Diferença entre Desconsideração da Personalidade Jurídica x Extensão da Falência

Oportuno diferenciarmos a “desconsideração da personalidade jurídica” da “extensão da falência”.

Enquanto na desconsideração da personalidade jurídica a responsabilidade patrimonial é circunscrita ao valor do benefício indevido que resulta para aquele que praticou o ato, na extensão da falência todo o patrimônio será atingido pelos efeitos estendidos da quebra.

Na desconsideração da personalidade jurídica, fica mantida integralmente a separação patrimonial de bens do sócio e da sociedade para todos os demais efeitos de direito e atos não abrangidos pelo desvio de finalidade. Diferentemente, na extensão dos efeitos da falência, todo o patrimônio daquele que é atingido será alcançado com a quebra, numa verdadeira equivalência de despersonificação completa da sociedade”. (grifo nosso) [2].

Logo, para que seja reconhecida a extensão da falência, exige-se a comprovação da confusão patrimonial e do desvio de finalidade, consubstanciadas em condutas perpetradas pelos sócios com o intuito manifesto de lesar credores.

Assim restou decidido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo

““O atrelamento da desconsideração da personalidade jurídica ao benefício experimentado em decorrência da confusão patrimonial e/ou do desvio de finalidade corrobora a tese de que a responsabilização, nessa hipótese, está limitada ao benefício, direto ou indireto, comprovadamente experimentado pelo sócio ou administrador a quem se dirige o pedido de desconsideração, diversamente do que ocorre na ação de responsabilidade prevista no art. 82”” (AI n° 2078990-10.2019.8.26.0000, Rel. Grava Brazil, j. 10/09/2019).

Não sendo demonstrados os requisitos legais ou o benefício experimentado, não cabe falar em extensão da falência.

Conclusão

O julgamento do REsp 1.897.356 pelo STJ representa um importante precedente para a interpretação dos requisitos para a desconsideração da personalidade jurídica e a extensão da falência, especialmente em casos de grupos societários. 

A decisão da Corte reforça a necessidade de se preservar a autonomia patrimonial das empresas, evitando-se a aplicação indiscriminada de medidas que podem comprometer a sua estabilidade e a segurança jurídica das relações comerciais.

É necessário compreender o uso adequado da desconsideração como medida extraordinária, que possibilita o avanço sobre o patrimônio do sócio, administrador, grupo ou terceiro, devendo estar preenchidos os requisitos elencados no caput, do artigo 50, do Código Civil.

A simples existência de grupo econômico não é suficiente para autorizar a desconsideração da personalidade jurídica. Sem a comprovação dos requisitos legais, ou artifícios fraudulentos, com benefício aos sócios, administradores, grupos ou terceiros, não há que se falar também em qualquer extensão da falência.

———————-

 [1] Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso”.

 [2] Tratado de Direito Empresarial, Vol. V, 2ª edição, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2019, p. 90/291, coordenador Modesto Carvalhosa.

———————-

Flavio Marques Ribeiro é Graduado em Direito pela FMU em 2004; Pós Graduado em Processo Civil pela PUC/SP. Pós- graduado em Direito Imobiliário pela Escola Paulista de Direito (EPD) e Pós-graduado em Direito Civil Empresarial e Contratos pela Damásio Educacional. Experiência e liderança no Contencioso Cível em diversos escritórios, com litígios envolvendo as áreas de Direito Empresarial, Contratual, Consumidor, Imobiliário, Societário, Tributário, Família e Sucessão.

Flavio Marques Ribeiro

Autor Flavio Marques Ribeiro

Mais publicações de Flavio Marques Ribeiro

Deixe uma resposta

×