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A herança digital ainda não é regulamentada no Brasil, apesar do crescente número de pedidos de acesso às redes sociais de falecidos. Ao contrário do que muitos devem imaginar, o assunto vai além das redes sociais e envolve bens digitais de caráter emocional e financeiro. 

Mas o que vem a ser a Herança Digital?

O acervo digital de uma pessoa é composto por contas em redes sociais e aplicativos, fotos, vídeos, áudios, arquivos de texto, e-mails, e-books, jogos online, assinaturas digitais, criptoativos, mensagens trocadas no aplicativo WhatsApp, publicações em redes sociais, dentre outros.

Sendo assim, a herança digital refere-se à transferência de patrimônio digital após o falecimento do titular. Este patrimônio é constituído por bens incorpóreos, conforme relacionado acima, que podem ter valor econômico ou afetivo. Geralmente, os bens digitais são processados em dispositivos eletrônicos, e podem ser armazenados em servidores físicos ou na nuvem.

Mas não podemos confundir patrimônio e herança digital; o primeiro engloba bens digitais e materiais, que são transmitidos aos herdeiros legítimos ou testamentários de alguém, quando do falecimento. Já a herança digital trata apenas de bens incorpóreos, que também estão suscetíveis à sucessão hereditária.

Conforme relatado inicialmente, ainda não existe legislação específica que trate sobre esses bens. Portanto, há um conflito entre o direito à privacidade do falecido e o direito à herança dos sucessores, havendo profissionais do Direito que defendem que este tipo de herança digital só deve ser compartilhado com a família, quando o desejo for expresso em testamento, por exemplo.

Como estamos vivendo um aumento exponencial da utilização das ferramentas digitais e, agora, com a possibilidade de o público utilizar livremente a Inteligência Artificial, o Poder Judiciário já vem decidindo sobre casos que envolvem herança digital. Ganhou destaque recente acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo que concedeu à genitora, como herdeira, os direitos ao “patrimônio digital” do celular da filha falecida. 

O pedido especificamente era de transferência do “ID Apple” da falecida, o qual havia sido negado em primeiro grau [1].

Neste caso, a sentença havia julgado improcedente o pedido da mãe, sob o argumento de que, inexistindo a autorização expressa deixada em vida pela pessoa falecida (filha), a concessão de acesso violaria a privacidade do de cujus, uma vez que atualmente os aparelhos celulares contêm elementos de natureza íntima e personalíssima, como vídeos, fotos e mensagens, funcionando tal como um diário particular e exprimindo o âmago mais recôndito do indivíduo.

Inconformada, a mãe recorreu da decisão, alegando que era a única herdeira da filha falecida, fazendo jus, portanto, aos bens deixados por ela, o que abrangeria, além dos bens materiais, o acervo digital de dados da filha. Alegou, ainda, que os arquivos digitais consistiam em bens móveis contemplados pelo artigo 83, I, do Código Civil, que alude às “energias que tenham valor econômico”, e como bens, deveriam ser transmitidos à única herdeira.

A 3ª Câmara de Direito Privado do TJSP deu provimento ao recurso apresentado pela mãe, pois os Desembargadores entenderam que não havia justificativa para obstar o acesso da única herdeira às “memórias da filha falecida” e que não havia no processo, qualquer indício de que isso violaria direitos da personalidade, notadamente diante da ausência de disposição específica proibindo o acesso aos seus dados digitais pela família.

Como dito, a discussão tem se tornado cada vez mais recorrente, mas agora nos tribunais do Brasil e do mundo. Nessa linha, com o objetivo de tratar sobre a matéria da transmissão dos bens digitais, o anteprojeto de reforma do Código Civil brasileiro entregue recentemente ao Senado, além de incluir capítulo específico destinado ao patrimônio digital, regula o tema de sua transmissão com o falecimento. 

Entre as regras sugeridas, fica expressamente mencionado acerca dos direitos de personalidade que se projetam após a morte, tais como privacidade, intimidade, imagem, nome, honra, dados pessoais, entre outros, o que evidencia a pós-eficácia desses direitos.

É prevista também a possibilidade de que o autor da herança disponha em testamento sobre os dados e informações contidas em qualquer aplicação de internet, bem como das senhas e códigos de acesso. Embora não haja regulamentação específica sobre os bens digitais, o que será solucionado pela proposta de reforma do Código Civil, essa já é a regra atualmente, pois o artigo 1.857, §2º, do Código Civil de 2002, autoriza a disposição testamentária de caráter não patrimonial.

A proposta vai ainda além, estabelecendo que o compartilhamento de senhas ou de outras formas para acesso a contas pessoais serão equiparados a disposições contratuais ou testamentárias expressas para fins de acesso dos sucessores, desde que devidamente comprovados!

Sendo assim, com a finalidade de preservar a intimidade dos envolvidos, as mensagens privadas do falecido armazenadas em ambiente virtual não poderão ser acessadas pelos herdeiros, em qualquer das categorias de bens patrimoniais digitais, exceto se houver expressa disposição de última vontade nesse sentido, e, de toda maneira, preservada a intimidade de terceiros.

Se não houver declaração de vontade do titular da conta digital, ficará autorizado que os sucessores, se desejarem, requeiram a exclusão da conta ou sua conversão em memorial, o que afasta o argumento de que a intransmissibilidade de bens existenciais tornaria as plataformas digitais, sobretudo as big techs, herdeiras universais dos bens digitais deixados pelo falecido.

Não deixando dúvidas de que a regulação sugerida se restringe aos herdeiros, e não às plataformas digitais, a proposta de reforma do Código Civil, ainda, determina que as contas públicas de usuários brasileiros falecidos sejam excluídas no prazo de 180 dias da comprovação do óbito, caso não haja herdeiros ou representantes legais do falecido.

Isso quer dizer que, a herança digital em nenhuma hipótese será transferida para a plataforma digital, mas tão somente aos herdeiros, se for o caso (autorização pelo falecido, respeitado os direitos de terceiros, ou decisão judicial no caso de necessidade)!

O ponto é relevante. Se uma pessoa falecesse décadas atrás deixando um diário particular, não há dúvida de que o diário, quando encontrado, seria entregue aos herdeiros. O Estado não tinha meios de conservar esses bens ou simplesmente deixá-los a salvo de todos, nem parecia razoável que promovesse a sua destruição.

Enfim, não há dúvidas de que o tema é permeado por dificuldades e obstáculos que ainda envolvem um longo caminho. Ainda assim, parece clara a importância de regulação sobre a matéria trazida pelo novo Código Civil, principalmente ao impedir a transmissão irrestrita de bens digitais existenciais sem que tenha sido autorizado pelo titular, sob pena de violação ao direito à intimidade do próprio titular e de terceiros.

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 [1] SP. Tribunal de Justiça. Ap. 1017379-58.2022.8.26.0068; Rel. Carlos Alberto de Salles; 3ª C. de Direito Privado; DJ: 26/04/2024.

Cecile Rocha de Oliveira é Bacharel em Direito pelas Faculdades Metropolitanas Unidas – FMU e Pós-graduada em Direito Processual Civil pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Atualmente é membro da Comissão de Direito Civil e Comissão de Direito de Família e Sucessão da OAB Butantã. Possui experiência em contencioso cível em geral, atuando nas áreas de Direito Civil, Consumidor, Saúde, Imobiliário, Família e Sucessões.

Cecile Rocha de Oliveira

Autor Cecile Rocha de Oliveira

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