Como todos sabem, vivemos em um contexto de transformação social e de reconhecimento das mais diversas formas de entidades familiares, e a legislação brasileira vigente novamente tem se mostrado incapaz de acompanhar a evolução, a velocidade e a complexidade dos mais diversos modelos de núcleos familiares que se apresentam como verdadeiras entidades familiares.
Um exemplo disso seriam as uniões paralelas, as quais se configuram como aquelas que acontecem simultaneamente, ou seja, é a situação em que uma mesma pessoa possui duas uniões ao mesmo tempo, mas uma tendo se iniciado antes da outra.
Apesar de a própria Constituição Federal deixar claro que as diversas formas de família existentes atualmente são desamparadas juridicamente, eis que as uniões paralelas não poderiam ser reconhecidas.
Nesse sentido, recentemente, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu ser incabível o reconhecimento de união estável simultânea ao casamento, assim como a partilha de bens em três partes iguais (triação), mesmo que o início da união seja anterior ao matrimônio!
Este entendimento foi firmado no julgamento de um recurso especial interposto em um processo que corre sob segredo de justiça, por uma mulher que conviveu três anos com um homem antes que ele se casasse com outra, inclusive, manteve este relacionamento por mais 25 anos.
Ao STJ, a mulher reiterou o pedido de reconhecimento e dissolução da união estável, com partilha de bens em triação (ela, ele e a esposa dele).
Assim, ao dar parcial provimento ao recurso, o colegiado considerou que não há impedimento ao reconhecimento da união estável no período de convivência anterior ao casamento, mas, a partir desse momento, tal união se transforma em concubinato (simultaneidade de relações).
Sobre este período posterior à celebração do matrimônio, a mulher e o homem tiveram dois filhos durante o concubinato que durou 25 anos e era conhecido por todos os envolvidos. Segundo a Relatora do recurso, essa relação se equipara à sociedade de fato, e a partilha nesse período também é possível, desde que haja prova do esforço comum na construção patrimonial (Súmula 380 do STF).
Mesmo no ordenamento jurídico brasileiro ser estabelecido a monogamia, o Juiz de primeira instância havia acolhido o pedido da mulher e reconheceu todo o período de convivência como união estável, com a consequente partilha em triação. Porém, acolhendo recurso do casal, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) reformou a sentença, entendendo que é o casamento que deve prevalecer sobre o concubinato.
A ministra Nancy Andrighi afirmou que, segundo a jurisprudência, “é inadmissível o reconhecimento de união estável concomitante ao casamento, na medida em que aquela pressupõe a ausência de impedimentos para o casamento, ou, ao menos, a existência de separação de fato”.
A magistrada também lembrou que o Supremo Tribunal Federal (STF), em situação parecida, já foi fixada a tese de que a preexistência de casamento ou de união estável de um dos conviventes impede o reconhecimento de novo vínculo, em virtude da consagração da monogamia em nosso país.
Desse modo, o colegiado reconheceu como união estável apenas o período de convivência anterior ao casamento. Segundo eles, a partilha referente a esse intervalo, por se tratar de união anterior à Lei 9.278/1996, requer a prova do esforço comum na aquisição do patrimônio, ou seja, a mulher deve provar que participou ativamente na constituição do patrimônio em nome do homem, nos termos da Súmula 380 do STF.
À vista disso, extraímos do recente julgado é que os arranjos familiares multifacetados não podem e nem devem passar despercebidos pelos legisladores e principalmente pelo Poder Judiciário, que não pode em qualquer hipótese se eximir de indicar os efeitos jurídicos diante da existência de uma entidade familiar, seja ela qual for.
Mais do que a monogamia, devem ser valorizados a autonomia, a liberdade de escolha e a intimidade dos indivíduos no momento da formação de sua família.
Nesse sentido, diante de entidades familiares paralelas, merecedoras da chancela jurídica, o Estado precisa assumir o encargo de proteger o livre desenvolvimento da personalidade e os planos de vida de seus cidadãos.
Por fim, é importante ressaltar que não se trata de uma crítica a orientação da monogamia, pois cada um pode escolher viver e se relacionar da forma que bem entender. Trata-se, porém, de respeitar e conferir proteção estatal àqueles que escolhem uma configuração familiar diferente do “padrão” estabelecido pela sociedade.
Cecile Rocha de Oliveira é Bacharel em Direito pelas Faculdades Metropolitanas Unidas – FMU e Pós-graduada em Direito Processual Civil pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Atualmente é membro da Comissão de Direito Civil e Comissão de Direito de Família e Sucessão da OAB Butantã. Possui experiência em contencioso cível em geral, atuando nas áreas de Direito Civil, Consumidor, Saúde, Imobiliário, Família e Sucessões.