Um assunto que tem trazido bastante discussão no Poder Judiciário é a concursalidade de créditos dentro da recuperação judicial.
Nos últimos anos, os Tribunais Estaduais vinham se debruçando com diversas situações ocorridas durante o curso de recuperações judiciais, ora se reconhecendo a natureza extraconcursal de um determinado crédito, ora se reconhecendo sua natureza como concursal.
Através do Tema 1.051, do Superior Tribunal de Justiça, restou decidido que a existência do crédito é determinada pela data em que ocorreu o seu fato gerador, e não pela data da sentença que o reconhece.
Embora tenha se resolvido parte do problema sobre o momento da existência do crédito pelo fato gerador, muitas lacunas ainda existem e precisam ser avaliadas pelo Superior Tribunal de Justiça, principalmente em 03 (três) situações a seguir descritas:
a) credor que decide não habilitar o crédito;
b) credor que é excluído da recuperação judicial;
c) encerramento da recuperação judicial.
Na primeira situação do credor não habilitar o crédito, no julgamento do Recurso Especial nº 1.851.692 – RS (2019/0360829-6), em 25.05.2021, tendo como Relator o Ministro Luis Felipe Salomão, ficou decidido que o credor tem a faculdade de habilitar o crédito, podendo aguardar o encerramento da recuperação judicial e assumir as consequências jurídicas (processuais e materiais) da sua escolha para então prosseguir com a cobrança, mesmo entendimento exposto no CC 114.952 em 14.09.2011, pelo Relator Ministro Raul Araújo.
Sendo assim, o credor poderia esperar o término da recuperação judicial, para então prosseguir com a cobrança, assumindo os riscos desta escolha, de modo que se o crédito foi arrolado pelo devedor no plano de recuperação, a cobrança ficaria sujeita a novação, ao passo que se a obrigação não foi abrangida no acordo recuperacional, não há que se falar em novação, excluindo-se o crédito da recuperação, podendo ser satisfeito de forma autônoma.
No último dia 27.04.2022, no Recurso Especial nº 1.655.705 – SP (2017/0022868-3), tendo como Relator Ministro Villas Bôas Cueva, também se decidiu que o credor não indicado na relação dos credores constante da petição inicial da recuperação não é obrigado a se habilitar, eis que o direito de crédito é disponível, porém não terá como receber seu crédito fora da recuperação, devendo a execução ficar suspensa para depois do encerramento prosseguir com a cobrança individual.
Na segunda situação em que o credor é excluído do plano de recuperação, o debate fica mais acalorado, principalmente para saber se nesta situação, o seu crédito deve ser considerado ou não como concursal.
Para analisar este cenário, temos que compreender todo o quadro fático do caso concreto, principalmente em que momento houve a exclusão do credor, e se o pedido foi formulado pelo próprio devedor que está em recuperação judicial.
Sabemos que todos os créditos existentes na data do pedido estão sujeitos aos efeitos da recuperação judicial, facultando-se a recuperanda por negociar com apenas parte de seus credores. O artigo 49, § 2º, da LREF afirma que as obrigações anteriores à recuperação observarão as condições originalmente contratadas, salvo se de modo diverso ficar estabelecido no plano de recuperação judicial.
Nesse sentido, se a empresa em recuperação opta por não incluir determinado crédito na recuperação judicial, seja por iliquidez ou adotando posição contrária ao administrador judicial que na fase inicial de verificação havia sugerido incluir o crédito na lista de credores, esse crédito jamais pode ser considerado como concursal.
Outro cenário: e se após a liquidez do crédito através de título executivo judicial (sentença), o credor tenta ingressar na recuperação judicial, pede a reserva de valores (art. 6º, § 3º da LREF), e o devedor novamente se insurge sob o pretexto que não houve ainda o trânsito em julgado da decisão que tornou líquido o crédito? Ainda sim este crédito dever ser considerando concursal?
Entendo que não, já que a partir do momento em que o devedor tem ciência da existência do crédito, deveria voluntariamente ou legalmente incluir o crédito na lista de credores, sob pena de assumir as consequências jurídicas (processuais e materiais) com a dívida podendo ser exigida com todos os encargos devidos, sem qualquer vínculo com o plano de recuperação.
Agora se a empresa arrola o crédito no acordo recuperacional e o credor mesmo tendo a oportunidade de habilitar o crédito não o faz porque decide aguardar o encerramento da recuperação, declarando expressamente essa vontade, é certo que ele não pode fazer isso com o intuito de obter vantagem indevida tanto em prol dos demais credores como em cima da empresa recuperanda.
Daí porque a decisão proferida no Recurso Especial nº 1.851.692 – RS (2019/0360829-6) caminha melhor que a decisão do Recurso Especial nº 1.655.705 – SP (2017/0022868-3), principalmente porque ela parte do princípio do crédito ter sido excluído e não ter sido arrolado no plano recuperacional, mesmo que o devedor pudesse fazê-lo, garantindo assim ao credor a cobrança pelas vias ordinárias.
A decisão proferida no Recurso Especial nº 1.655.705 – SP (2017/0022868-3), com todo o respeito que ela merece, protege demasiadamente a empresa recuperanda, criando situações que podem eternizar a recuperação judicial e lesando credores singulares ou de determinada classe.
Como por exemplo, na última situação a ser aqui trazida de encerramento da recuperação judicial, cujo tema ainda será objeto de melhor análise pelo Superior Tribunal de Justiça.
Veja a seguinte situação: o credor é excluído da recuperação judicial a pedido do devedor na fase inicial de verificação sob a alegação de crédito ilíquido; após a liquidez da dívida, mas na pendência de recurso, o credor tenta ingressar na recuperação judicial mas novamente é excluído a pedido do devedor; nesse ínterim, ocorre o encerramento da recuperação judicial, é correto afirmar que o crédito seria concursal?
A resposta é negativa, ainda que na decisão proferida no Recurso Especial nº 1.655.705 – SP (2017/0022868-3) tenha se admitido que o reconhecimento judicial da concursalidade do crédito, seja antes ou depois do encerramento do procedimento recuperacional, torna obrigatória a sua submissão aos efeitos da recuperação judicial, nos termos do art. 49, caput, da Lei nº 11.101/2005.
Isto porque toda a postura do devedor de impedir o credor de ingressar ao longo da recuperação judicial, mesmo este mesmo devedor tendo a oportunidade de fazê-lo, acarreta para si o ônus de assumir o pagamento integral da dívida, sem qualquer submissão ao plano de recuperação.
Por isso que a decisão proferida no Recurso Especial nº 1.851.692 – RS (2019/0360829-6) deve servir de melhor parâmetro, pois trata-se da questão de quando o crédito deve submeter ao juízo da recuperação judicial, independente do encerramento, partindo do pressuposto se o crédito foi ou não arrolado no plano recuperacional pelo devedor, como assim foi decidido:
“De fato, se a obrigação não for abrangida pelo acordo recuperacional, ficando suprimida do plano, não haverá falar em novação, excluindo-se o crédito da recuperação, o qual, por conseguinte, poderá ser satisfeito pelas vias ordinárias (execução ou cumprimento de sentença). Trata-se, aliás, do posicionamento da doutrina especializada: Créditos não contemplados no plano de recuperação. As obrigações assumidas anteriormente à recuperação judicial devem ser normalmente cumpridas, de acordo com o que foi pactuado, inclusive no tocante aos encargos, exceto se o plano aprovado dispuser de modo diferente. Todos aqueles créditos que o devedor voluntariamente não incluiu no plano, mesmo que legalmente pudesse fazê-lo, não se sujeitarão aos efeitos da recuperação (LREF, art. 49, § 2º) (SCALZILLI, João Pedro. Recuperação de empresas e falência. São Paulo: Almedina, 2017, p. 246) (g/n).
Portanto, considerando as recentes decisões proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça, as quais ainda pendem de julgamento definitivo, não havendo assim caráter definitivo e vinculante, cada caso concreto deve ser analisado, observando-se sempre as posturas de credor e devedor durante o trâmite da recuperação judicial, evitando injustiças para ambos os lados.
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*1) Art. 49 Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos.
2º As obrigações anteriores à recuperação judicial observarão as condições originalmente contratadas ou definidas em lei, inclusive no que diz respeito aos encargos, salvo se de modo diverso ficar estabelecido no plano de recuperação judicial.
Art. 6º A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial implica:
*2) 3º O juiz competente para as ações referidas nos §§ 1º e 2º deste artigo poderá determinar a reserva da importância que estimar devida na recuperação judicial ou na falência, e, uma vez reconhecido líquido o direito, será o crédito incluído na classe própria.
*3) Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos.
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Flavio Marques Ribeiro é Graduado em Direito pela FMU (Faculdades Metropolitanas Unidas) no ano de 2004; Advogado, especialista em Processo Civil pela PUC/SP. Pós- graduado em Direito Imobiliário pela EPD – Escola Paulista de Direito e Pós-graduado em Direito Civil Empresarial e Contratos pela Damásio Educacional. Sócio fundador da ZMR Advogados. Tem vasta experiência profissional em grandes escritórios de advocacia. Atua nas áreas de Direito Civil, Imobiliário, Empresarial, Contratual, Consumidor, Família e Sucessões.