A utilização de tecnologia atualmente está presente em nosso dia a dia bem mais que uma ferramenta de comunicação ou um facilitador de tarefas, virou uma necessidade e futuro da nossa sociedade. Está nas fotografias, vídeos, áudios, arquivos de texto, e-mails, e-books, assinaturas digitais, jogos on-line, aplicativos e em redes sociais, ou seja, dados pessoais que compõem o patrimônio digital de uma pessoa.
Segundo pesquisa realizada pelo SindiTelebrasil – Sindicato das Operadoras de Telecomunicação no ano de 2020, três em cada quatro brasileiros acessam a internet, o que corresponde a 134 milhões de pessoas (*1). Mas o que acontece com o patrimônio digital dessas pessoas quando falecem? Será que há preocupação com o destino deste bem quando chegar ao final da vida?
A alta demanda do uso da tecnologia gera aumento no número de bens e serviços utilizados, publicados ou guardados em plataformas e servidores virtuais. Assim, estes “bens” podem ser denominados ativos e caracterizados como bens incorpóreos, que possuem sim um valor econômico ou afetivo, constituindo o patrimônio digital de uma pessoa. Porém, o acúmulo destes bens repercute no Direito, especialmente no que tange à herança digital, ou seja, à transferência desse patrimônio quando do falecimento de seu titular.
Infelizmente, por mais que estejamos em uma geração altamente conectada, o Poder Judiciário ainda possui uma tendência em negar o direito à herança digital para herdeiros que vêm a requerê-la. Mas essa tendência possui justificativa razoável, na medida em que ainda não há legislação específica que regulamente o tema.
Desse modo, levando em consideração o grande volume de dados pessoais tratados e a vigência da LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados), as plataformas digitais já vêm criando relações cada vez mais transparentes com seus usuários para buscar conformidade com a lei, porém ainda falta conscientização da população sobre as normas aplicáveis, ainda mais levando em conta que os termos de uso das plataformas têm apresentado certa restrição ao pedido de transferência.
Além disso, dois projetos de lei que tratam sobre o tema foram arquivados na Câmara: o PL 7.742/17, que pretendia acrescentar um artigo ao Marco Civil da Internet, para que houvesse expressa determinação legal quanto ao dever dos provedores de aplicações de internet de excluir as respectivas contas de usuários brasileiros mortos; e o PL 8.562/17, que pretendia acrescentar capítulo próprio sobre herança digital ao Código Civil para assegurar o direito dos familiares de gerir o legado digital.
Contudo, por mais que no Brasil ainda não tenhamos legislação específica sobre o tema, recentemente o Judiciário Paulista concedeu o direito a um pai de acessar fotos e vídeos do celular do filho que morreu ao ser atropelado em Santos/SP. A decisão foi proferida pelo juiz de Direito Guilherme de Macedo Soares, da 2ª vara do JEC de Santos, no litoral de São Paulo (processo nº 1020052-31.2021.8.26.0562).
Na decisão o Magistrado considerou o interesse da família em acessar arquivos de valor sentimental, destacando que pelo atual Código Civil Brasileiro, os genitores são os legítimos herdeiros do rapaz. Dessa forma, concedeu a transferência dos dados para a conta do pai, para que assim, a família tenha acesso a vídeos, fotos e mensagens enviadas e gravadas por João e salvas no telefone dele.
Este foi mais um dos inúmeros casos que ressalta a importância e o dever de os Direitos digitais estarem presentes no planejamento sucessório. Hoje em dia a herança de bens e direitos digitais ainda ficam de fora de instrumentos legais que definem a partilha de bens do falecido, porém podem gerar ações judiciais que esbarrem na falta de regulamentação específica, como a do caso citado.
Hoje existem dois tipos de bens no ambiente virtual: fotos, textos e diários são os chamados bens de valor existencial, enquanto documentos, senhas, criptomoedas, músicas, livros, jogos, softwares, perfis em redes sociais e em plataformas de jogos online, NFT’s (non-fungible token, ou em tradução livre, tokens não fungíveis) e demais itens que podem gerar receitas, são considerados bens de valor econômico.
Lembrando que os aplicativos, plataformas, sites e provedores não disponibilizam dados como logins e senhas de páginas pessoais apenas pela vontade de familiares, logicamente por questões de segurança e privacidade de seus usuários. Assim, quando não estiver especificado no testamento pelo falecido, por exemplo, a decisão de como lidar com a herança pode ser complicada já que não há regulamentação em dispositivo ou lei sobre o assunto.
Neste ponto o Marco Civil da Internet e a LGPD vieram para dar um breve suporte na tomada de decisão, mas não preveem o tratamento de dados e propriedades digitais no caso de morte ou incapacidade do usuário titular, baseando-se principalmente na proteção da privacidade.
Assim, para firmar um testamento mencionando a herança digital, a pessoa deve ser maior de idade, estar lúcido, apresentar a carteira de identidade, CPF e fornecer duas testemunhas que não tenham parentesco. Neste caso específico é recomendado que seja realizada uma consulta a um advogado especialista para discutir sobre o assunto, pois cada caso é específico e possui suas particularidades.
(1*) Disponível neste link (site agenciabrasil.ebc.com.br)
Acesso em 12/02/2022 às 11h24
Cecile Rocha de Oliveira é Bacharel em Direito pelas Faculdades Metropolitanas Unidas – FMU e Pós-graduada em Direito Processual Civil pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Curso de Planejamento Matrimonial – Do Bem aos Bens. Possui experiência em contencioso cível, passando pelas áreas de Direito Bancário, Direito Civil e Direito do Trabalho. Atualmente, advoga na ZMR Advogados na área de Direito Imobiliário.